Há muito tempo, antes de redigir essa crônica, ladeando um rio que me remetera escrever reflexões citadinas, muitas delas admiradas por meu pai, encontrei, a princípio literariamente, um bairro de São Paulo, uma espécie de cidade dentro de outra cidade maior com trens lotados, avenidas movimentadas e de súbitos acontecimentos a invadir a margem da coerência do discernimento sobre o bem e o mal.
Circunstancialmente, por uma dessas coincidências da vida, passei a trabalhar cotidianamente nesse bairro – cidade. O convívio com diáfanos jovens, em ritos de educação e cultura, ensinou-me a dar passagem e difundir a luz das idéias sem diatribes, nem imposições, mas com a lida de abrir caminhos para que a comunicação e os bens simbólicos ampliassem o universo de possibilidades de transformação de tantas vidas de um coletivo, que passei a chamar em minhas manifestações literárias de comunidade de sentidos.
A ausência de movimento econômico - produtivo, a escassez de capital social, expressão oriunda da contemporaneidade empreendedora, e o legado de vida ribeirinha do Tietê totalmente transtornado, sinuosamente levaram-me a entender o ritmo mais compassado desse lugar, a apreciar seu singular pôr do sol, as fachadas das casas a lembrar a gênese cristã com tons que insinuam argila ou obra inacabada, a traduzir desejos e afirmações de estar de passagem, desde os pioneiros trabalhadores nordestinos em busca de empregos, naqueles tempos de industrialização, até a chegada de outros brasileiros levados pela perspectiva de vida digna na metrópole que em alguns momentos transforma-se numa quase necrópole.
Identificado com o lugar o qual passei a chamar de “antropoiesis”, corpo e alma se fundiram às ruas, a um Galpão, às vielas, simbioticamente, numa dinâmica incessante de remar contra a maré, a qual já fizera parte, nos tempos em que desconhecia todo zênite e toda profundidade dessa constelação periférica, esquecida pela cúpula que rege a cidade, e como um tolo relatei tantas histórias de outros cantos bem aventurados, sempre a ter como referência em minhas narrativas o lugar onde vivi a infância, adolescência, juventude, no qual moro ainda hoje com minha família.
Mas agora tudo mudara, descobrira verdadeiramente o meu lugar numa outra história, fruto da ontogênese vivida e da dedicação advinda dos encontros e ações que produziram conhecimento e uma epistemologia, onde a natureza e os limites do conhecimento fizeram com que visse a cidade onde nascera além do conceito geográfico, e aos poucos a percebera como um símbolo complexo e inesgotável da existência humana.
E hoje, nesses dias de chuva, quando revisito mnemonicamente minha infância, percebo que a vida dessa gente desse outro lugar, que perpassa e navega diariamente em busca do sustento tem outros princípios, códigos, ritos, outros rios na memória. Rios com suas águas que ficaram na imaginação e na lembrança dos que primeiro chegaram, nesse ou em outro jardim, de tantas outras águas, jardins ou vilas engolidos pela jusante e vazante de políticas viciadas na dinâmica da iniqüidade.
Escorrem nos vidros da janela do trem vindo do Brás e que abençoadamente segue para São Miguel, a água da chuva, prenúncio de frescor e sofrimento. O bairro – cidade espreita em silêncio, percebe-se, ao caminhar pelas vielas molhadas, os olhos das casas mirando o céu, com seus sentidos simbólicos, advento de proteção e desgraça. No córrego refletido o cinza melancólico e o movimento das crianças. Na quebrada “os bagulhos molhados, a metrópole continua a empurrar para bem longe do centro, o que sobrou, sobra humana. Para mim tudo é objeto de estudo e também de sofrimento.
Enquanto isso, em alguma habitação multi - familiar, um televisor anuncia as vítimas dos terremotos, cataclismos e conflitos geopolíticos. Agora no último vagão do trem que leva corpos e almas, um acreditar desafia as previsões e constatações econômicas – apocalípticas. Acredito que é possível mudar essa história anômala, mesmo a partir de movimentos quiasmáticos, sendo que é importante e vital reconhecer os sujeitos nos movimentos.
José Luiz Adeve (Cometa)
05 de março de 2010
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