Experiências Citadinas 3
Letramento e Manchas Urbanas
Com o corpo manchado segue o citadino,
percorre manchas da cidade que expele,
não gera, nem tão pouco acolhe.
A cidade que vivera ser um ventre
hoje não acalenta, não dá abrigo,
é repulsiva, não cabe dentro si,
orgânica, não sente dor,
seu organismo perdeu
a organicidade.
Da janela do trem vejo a cidade e algumas de suas manchas urbanas. O trem, lugar possível para eflúvios de um acólito letramento, eis minha mitigação para a dor citadina, ou seja penso e me manifesto criticamente numa multiplicidade de sensações traduzidas em símbolos os quais organizo com o pressuposto de que as pessoas possam sentir um pouco do que escrevo. E, mesmo aquilo que vejo, ouço e sinto sem poder registrar, mesmo que por ablação, mas julgo ser tão significativo nessa organicidade perdida, faz-se expressão de alguma maneira.
São cenas, imagens, expressões fisionômicas, gestos, diálogos, ações, sons, empurra – empurra de entrar e sair dos vagões, esse quase pouco disso tudo, pelos quais peço à memória adir com carinho e permanência. Tanta vida citadina com tantas vidas, tantas histórias a compartilhar com quem, de certa forma, deseje numa idiossincrásica leitura, viver algo tão estimulante de um letrar de alteridade com múltiplos sentidos e formas.
Manifesta-se nessa constante reflexão ora poética, ora prosaica, um sentido de práticas de sentir. Ah, sim, foi assim que passei a educar e ser educado e, nesse momento, aqui nesse trem, encontro significados para essas tais manchas urbanas, ou significados que delas advém, pois passei a me importar menos com a necessidade de entender do que de encontrar significados.
Manchas Urbanas. Sobre as quais tantos antropólogos, sociólogos, cientistas sociais e tantos outros estudiosos da contemporaneidade debruçaram-se e, aqui exposto ao sol, apesar de levemente protegido por estar num vagão de trem, percebo que minha pele arde de calor. Claro, sem o suficiente protetor solar, integro o grupo de risco às ulcerações e demais ocorrências na derme, epiderme e hipoderme, similar ao espaço geográfico da cidade que observo da janela do trem, numa percepção simbólica proveniente de um dia de calor excessivo desses tempos de outono, é verdade, apesar do frio de uma solidão paradoxal, em meio a um convívio coletivo, que me remete ao haikai do poeta Bashô, corvo solitário em galho desfolhado, amanhecer de outono.
Imagino que a cidade tenha uma derme e, por motivos diversos, reações de seu doentio organismo, funcionamento do sistema endocrinológico, até mesmo biliar ou gastrointestinal decorrem anomalias, exteriorizadas em cadeia, manchando o tecido urbano compreendido por um emaranhado de formas e modos, que surgem a cada necessidade dos seres humanos de viver em unidades administrativas, também denominadas cidades, que se pressupõe tenham organização social, política, recursos, dinâmica sistêmica representativa e participativa para garantir o desempenho e o bom estado das condições fundamentais e inerentes ao existir social.
Nessa ação de letramento num coletivo de transporte, diagnostico metafórica e metonimicamente a cidade. Febre e variações abruptas da pressão arterial têm levado esse organismo urbano a derrames, que exigem tratamentos emergenciais, sempre emergenciais, em função da ausência de preventivos.
O sistema endocrinológico, por exemplo, que não funciona bem, é formado por glândulas, que dentre outras funções, regulam a transpiração, produzem substâncias fundamentais para o equilíbrio hormonal, responsável também pela capacidade produtiva e reprodutiva, além de estimular desejos de equilíbrio e equidade, fundamentais para esta e outras gerações futuras, tornando-as sustentáveis e saudáveis, colabora também para, uma vez existentes as tais manchas urbanas, possam ser tratadas por um organismo revitalizado e fortalecido em sua capacidade de cura.
Pelo fato de engolir seco, gestões indigestas de seus representantes nos poderes constituídos, a cidade tem reações estomacais adversas, as quais além da azia, também provocam escoriações nas manchas urbanas e contribuem para a proliferação de outras manchas. Os intestinos desregulam-se e os absurdos ambientais intoxicam os espaços públicos em movimentos de alagamentos ou demais sinistros, e o ventre social aprisionado só gera e reserva desproporcional e desigualmente oportunidades, que a princípio seriam para equilibrar o estado social.
Acordo e me espanto. Escrevera e não me dei conta do tempo. O condutor do trem anuncia Estação São Miguel Paulista, o coração acelera, dispara, uma ansiedade toma conta de meus passos. Na plataforma caminho apressadamente, mesmo assim tenho tempo para observar a emissão de gases de uma indústria de tantas histórias contadas por tantos contadores de histórias. Desço as escadas, encontro-me em um corredor. Mais um lance de escadas, alguns jovens com camisas de times de futebol, dão impressão de túnel de um estádio. Subo, degrau por degrau, diariamente nesse movimento, logo mais estarei em um espaço que faz sentido, ler, escrever e comunicar compõem a nossa dinâmica. Ainda tenho tempo, são 6h30 de uma segunda – feira na cidade de São Paulo. Ultrapasso o bloqueio, a catraca, é possível tomar um café com leite no bar em frente, ao lado o calçadão com suas barracas multicoloridas. No balcão o caderno aberto, relatórios das atividades, textos... A memória traz uma lembrança da noite de ontem.
Ontem vi a lua minguante, quase não tive certeza se realmente não era crescente. Ultimamente ando distante da lua e das luas. Cresci, algumas vezes durante a vida, no sentido de incentivar os que desejam contar suas histórias, num escrever sensível e verdadeiro, a gerar movimento, dentre tantos outros movimentos opostos que colaboram para que quase sempre se conte somente uma história, de um jeito só, quando em todas as manhãs, uma certeza nos visita: a de que são tantas histórias, tantos contadores, criadores e atores a fazer parte, ou estimulados a perceber que estão dentro desse contar, numa composição de falar, letrar e sentir que é possível contar e viver tudo isso de infinitas maneiras, formas, organicamente artísticas, a mover e ser movido, desde a infância da arte até as constantes e eternas visitas nas manhãs dessa certeza viva, por mais que a letra e a cidade pareçam estar mortas.
Março de 2010
José Luiz Adeve (Cometa)
sexta-feira, 9 de abril de 2010
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