segunda-feira, 24 de maio de 2010

Na noção de identidade há somente a idéia do mesmo,

enquanto reconhecimento é um conceito que integra diretamente

a alteridade, que permite uma dialética do mesmo com o outro.

A reivindicação da identidade tem sempre algo violento em relação ao outro.

A busca do reconhecimento, ao contrário, implica reciprocidade”.

Paul Ricouer




o senhor quer saber nossa história, isso é importante,

mas não precisa saber minha identidade,

minha identidade é o seu reconhecimento

pela minha história, pela minha lida”.

Passageiro do ônibus Lapenna - Jacobina





Lapenna – Jacobina




A cada quinze dias, nas terças – feiras, do Mutirão do Jd Lapenna parte um ônibus alternativo para Jacobina, interior da Bahia. Uma espécie de “arara de pau”, movimento momentâneo migratório, ao contrário, brasileiro. Embarcam tantos brasileiros, que em São Miguel Paulista, bairro da cidade de São Paulo se estabeleceram e assim adquiriram também essa naturalidade paulistana. Prontos para a longa viagem senhores, senhoras, moços, moças, meninos e meninas e suas bagagens compostas de alimentos, brinquedos, roupas e tantas outras coisas, até mercadorias para comercializar em suas terras de origem.



Os prezados passageiros navegarão para Jacobina, estradão, durante três dias, duas noites, imagino que alternando pensamentos, ansiedades, expectativas e boas cochiladas, pois apesar de superarem as adversidades de viver em São Paulo, “ninguém é de ferro” – reforça um dos passageiros que quer ser reconhecido, mas não identificado e acrescenta: “o senhor quer saber nossa história, isso é importante, mas não precisa saber minha identidade, minha identidade é o seu reconhecimento pela minha história, pela minha lida”.



Será que Iranildo melhorou do esporão? Mãe NIna estaria curada da tal pressão alta? Vige e se pai Francisco vendeu o último lote do espólio de Moacir Simão para comprar televisão, ferro de passa roupa e o resto na poupança, pois tem os remédios da mais velha, Creuza, que desde que o marido partiu mais os fio, de Jacobina, para trabalhar no canavial, lá para as terras de Barra Bonita em Sumpaulo, entrou nessa tal de depressão... e não há Cristo que dê jeito de curar a Creuza, que perdeu o juízo, assim como a gente perde uma pena de passarinho, quando venta muito no sertão – comenta Dona Maria, antes do embarque nessa odisséia, classe afetiva – econômica, sobre a qual minha curiosidade, num desses dias de passagem pelo Mutirão - destino Galpão, fez questão de “pôr reparo” e indagar sobre esse translado.



A rua do Mutirão, local assim denominado, pois construído por um coletivo, no qual religião e movimento social se imbricaram, lá pelo fim dos anos 80, vira uma espécie de rodoviária de um ônibus só, um só destino, e tantas histórias brasileiras, nascidas nos arranjos locais criativos e surpreendentes de quem convive com a escassez.


As passagens são conferidas pela mesma pessoa que vendeu os bilhetes, num guichê improvisado numa casa onde também se vende detergente e outros produtos de limpeza, aliás, o Mutirão é um dos locais mais limpos do Jardim Lapenna. Como também limpos e muito bem vestidos, Sr. Hamilton e Zé Elias estão descansados, são motoristas experientes, num revezamento “com prudência e atenção, afinal são tantas almas brasileiras” – reforça Zé Elias. Ambos conduzirão o ônibus que se apresenta em bom estado e em condições para longa jornada.



Dona Maria fica feliz com a minha curiosidade. “É tão bom quando alguém se interessa pela gente, pelo que a gente tem para contar, se o senhor quiser, num dia desses, combina com os meninos que filmam lá do Galpão, tenho tanta história para contar, podia até colocar na televisão”´. Porém Sr. Hamilton adverte “só não contem a história desse ônibus, apesar dos documentos estarem tudo em dia, não é bom chamar muita atenção”.



Parece que os trilhos dessa cidade e os caminhos dessa vida me conduziram para esse pedaço da cidade, onde reside também um pedaço do nordeste, aqui onde a cada dia, sinto-me mais em casa, a conversar sobre o livro que Dona Marli “pegou emprestado do Ponto de Leitura”; ou ouvir de Sr. Tarcisio que “a gente é o que a gente enxerga”; das brincadeiras “palavreiras” de Sr. Antonio Brasileiro e seus chás afrodisíacos; dos repentes de Dona Nalva, sempre com tantas histórias para contar; ou os quitutes e bolos da Neusa; as tapiocas e o prosear de Dona Sônia; as análises políticas do Sr. Cosme; o café e a boa prosa de Dona Antonia; as ladainhas da Capela de São Judas Tadeu; as crianças na contação de histórias e depois a correr no Galpão, a perguntar se podem filmar, cantar, ler e mexer no computador; os pequenos a ritmarem com os sábios educadores aprendizes do ArteCulturAção; os jovens comunicadores do NCC a cativar tanta gente a comunicar histórias; as rodas do Ação Família a revelar e desvendar segredos de vida, num processo de construção de cidadania; nas descobertas desses garotos e garotas do Espaço Jovem, dispostos a contribuir com os outros, com Vivi Soranso a provocar sentidos de educar; na arte culinária a reconhecer a diversidade dos temperos dessa gente; e tantos personagens, cada qual com seus bens simbólicos a desafiar as probabilidades e o fatorial urbano a partir da constatação do índice de desenvolvimento humano e das perspectivas cientificadas.



São Miguel Arcanjo que lhe dê boa viagem. Dona Maria, quando a senhora voltar de Jacobina lhe procuro, quem sabe façamos um vídeo, uma canção, ou escreveremos juntos alguma história, podemos levar até para passar na escola.



Quem sabe nossos futuros “Pontos de Leitura” possam também contar com os “fazedores de vida”, com essa gente “escrevedeira”, como disse Sr. Cosme, quando viu alguns jovens a escrever rápido, num desses dias de TV de Rua, no qual também as crianças participaram, além de aplaudirem as imagens de seus desenhos pintados na Travessa Berigan. Tudo conspira para o reconhecimento e a difusão disso tudo. Fica muito mais clara a diferença entre identidade e reconhecimento, dentro e fora do livro, aqui mesmo no Jardim Lapenna.





José Luiz Adeve (Cometa)

É coordenador do

Núcleo de Comunicação Comunitária

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