- A garça e o menino
Uma garça refresca-se na manhã de descobertas humanas,
numa leve relação assim definida pela imagética teatralidade,
na várzea em que um tiê – tiê voara em tempos remotos,
quando o poder de fazer viver perpassava pelo fazer morrer,
e assim as águas de Tietê – rio, sinuoso como a bio – história,
na secura de um outono irrespirável, uma leitura,
por meio da literatura da vida nua de corpos informes,
me traz desejos de investigar a cisão entre o fato da vida,
as formas da vida e essa sensação de contemporaneidade
a suscitar esse constante “estado de emergência”
em nome da defesa da vida.
Lembrei da imagem da criança, um pássaro infantil, talvez garça – gente,
que vira com os pés submersos, na hoje circunvalação do rio,
nas fétidas águas, a tirar areia, numa cena sonorizada,
ruído da tensão elétrica, teias de ligações arranjadas.
Mas isso foi bem antes de avistar a garça,
há duas décadas, o tempo passara.
Garça e criança, iluminadas pelo sol, encontram-se na memória
em tempos diferentes, num só tempo de escrever.
A garça num parque dito ecológico, a criança
que vivera de retirar areia, na ampulheta
das impressões poéticas, crescera.
Eu voltara, depois de vinte anos
ao lugar que talvez nunca saíra,
agora, não só a observar,
mas a viver, interagir.
Ninguém mais tira areia para sobreviver,
existem outras maneiras,
algumas perigosas,
outras criativas.
Um viaduto toma o lugar das moradias,
garante uma importante via
para o fluxo da economia,
caminhões e automóveis
percurso Jacu Pêssego,
faltam outras conexões
e uma garça persiste,
do outro lado da rodovia,
a descansar, patas submersas,
numa lagoa do Tietê,
a provocar reflexão
sobre no que avançamos,
nessa história de viver juntos,
porém tão cindidos e separados
pelos afluentes da diferença,
e na persistência de viver
nas várzeas, nas margens
e no leito da adversidade.

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