História de “se achegar”, auscultar, contar e recontar
Cometa
Diariamente quando escurece, lá no Mutirão, Dona Ana da quitanda lembra com carinho de sua mãe. Hoje a lua é cheia, e os olhos e a pele negra de Dona Ana brilham mais do que o sol, do que a lua, do que as águas mais claras, guardadas na memória, das lagoas azuis e transparentes de um Tietê que não corre para o mar.
Daí, ele, feito um cirandeiro a cirandar por tantos cantos da cidade e, nesses últimos tempos por essas terras ribeirinhas, senta-se e faz parte de uma roda de conversa que gira e faz a lua girar sob o encanto dessa gente com suas prosas e contos, que até quem sabe Arcanjo Miguel se junta a essa roda para poder escutar.
Em meio a “contação” Zé Alagoano recorda que onde hoje está o Galpão, havia uma imensa lagoa, história que conta com a aprovação de Dona Nalva, ela que tem tantas fotografias da várzea do Tietê para mostrar.
E se a lua é cheia, uma garoa teimosa e fria, em pleno outono, aproxima essa gente ainda mais, sendo que tudo isso é vivido também por ele, que vive, imagina e respeita toda a subjetividade e signos dessa gente, nessa roda de corpo e alma.
Um café “arretado de quente” invade a conversa e aquece além de Dona Ana, Nalva e Zé Alagoano, também a Zeca Jacobino, Zé Nilton, Dona Lurde, o pai do Jovem Renan e Dona Cícera, além é claro dele, esse senhor a viver a riqueza cultural subjetiva e invisível àqueles “distantes de se achegar”, como dizem muitos desse lugar, pois se sentam muito mais em outras mesas, outras rodas as quais muitas vezes não fazem a lua girar.
Sim, ele continua atento aos jeitos, trejeitos das pessoas a comentar sobre o bairro, a localidade, além das recordações de como viviam “quando se achegaram por cá” e como a vida hoje segue, de certa maneira, um tempo e um espaço confuso de aperrear a gente, tanto que faz falta esse encontro desse encontro, desse agora, para poder prosear.
São Miguel Paulista. Existem tantos motivos que nos fizeram parar nesse lugar. Alguns como ele, nessa roda, na quitanda de Dona Ana, foi por motivo de trabalho e de escolha que advieram do desejo de colaborar.
No caso de Dona Ana, Nalva, Zé Alagoano, Zeca de Jacobina, Dona Cícera, Dona Lurde, Zé Nilton e o pai de Renan foi o movimento pela sobrevivência, pau de arara, que muitas vezes quase provocou um “arara de pau”, ou seja, uma volta para os lugares onde nasceram, em função dessa cidade ter sido danada “na lida dos dias de sorte tentar” - como afirma Zeca Jacobina com a voz forte e um ar de quem superou as dificuldades dessa nossa capital.
O trem passa e o ruído interrompe a prosa de recordar. “Logo mais, antes da passarela de madeira cair, a estação fica pronta, e a tal passagem para o outro lado, vai ter que ser feita na de concreto, que viche sai lá para frente” – constata Dona Lurde que vive o sobe e desce para ir ao Posto de Saúde se tratar.
Alguém recomenda visitar, lá no Narinho, o Posto de Saúde provisório, aliás, uma vitória de um movimento popular... Caro leitor, o texto que você lê até agora, sofrerá interrupção, pois o narrador dessa história tem que ir embora, pois já são 8 horas da noite, desde 06 horas da tarde o cronista, nome chique, parou e se sentou para auscultar.
Ele, nosso narrador, atravessa a passarela de madeira, a lua abençoa, como diz Dona Ana, o seguir o caminho, até chegar lá pras bandas do Brás. No trem abre jornal e lembra das escolas, dos professores, dos educadores e dessa última roda ao luar, da quitanda de Dona Ana, do aroma do alecrim, tantos olhares, tantos saberes e histórias para contar e recontar.
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