Crônica da sensibilidade regenerada
Experiência citadina
A cerejeira aponta para a janela do trem. Uma criança avista um ponto e identifica como aquele que seu pai trabalha. Armazéns e galpões do Brás transpiram na manhã fria, orvalhando gotas de histórias com um céu azul a testemunhar lembranças animadas pelo observador, esse que sente e tenta entender a cidade também como literatura.
Os trilhos indicam tantas vias e possibilidades da vida seguir, também traz a memória, os ditos, impressões de personagens, gentes que criam e animam inanimados, dando vida, alma, a cidade, suas casas e objetos, espaço e pensamento.
Conduzidos e condutores percorrem as malhas viárias e ferroviárias. Marmitas chacoalham em bolsas, mochilas improvisadas, aromas e temperos pulverizam a Estação Tatuapé, com o Sol a revelar e identificar o cheiro do alho das mãos da senhora adormecida nessa manhã, nesse atravessar a cidade para ao trabalho, incontinente seu corpo repousa, adormecida senhora.
O creme hidratante em movimentos ternos e ritmados com cuidado e delicadeza, embeleza a educadora da escola pública, que em seguida corrige atentamente as provas, na trepidação do veículo, com a luz do sol a acentuar o branco da folha de papel.
Muitos usuários evitam olhar para as outras pessoas e se compenetram na digitação do teclado, do celular, numa composição melódica, a partir da harmonia em acordes do zunir das portas, síncopes de trilhos e formatos de sons de motor eletromecânico contínuo com seus portamentos acústicos.
Também pela janela, como aquele menino que procura em algum ponto seu pai, feito um Hamlet, a dialogar com o que até numa dessas manhãs considerava fantasmagorias desses labirintos citadinos, testemunho o diálogo entre os prédios do Tatuapé, sendo que os vãos entre eles faz com que eu abandone meu corpo, criando uma técnica para escrever, descrevendo-me no aqui, agora, nas circunstâncias das imposições do meio, passando a viver e relatar, por instantes, a projeção do que não estava ali e sim da transformação em relação ao meio.
Seria esse escrever, a partir desse momento, um mero prolongamento das funções do meu corpo e assim nem o corpo, nem o mundo permaneceriam os mesmos?
No espaço que compreende a Vila Prudente, a mediação que faço entre o que vejo, sinto e o imaginário leitor, ganha novos contornos, assim como as mãos com luvas pretas da moça apoiadas no antebraço, e este com o cotovelo sustentado pelo encosto do banco, faz com que sua outra mão aproxime-se da boca que articula palavras para um diálogo com uma menina que apóia a cabeça em uma de suas mãos.
Mas por mais detalhes expostos nesse texto, a técnica de escrever sempre traz outros traços a isso que presencio e, quando a porta do trem abre no Ermelino, revisito minha ansiedade de fazer ainda mais por tudo isso que ai está, por essa realidade subjetiva e também imaginada, quem sabe para mitigar a aflição humana, num diálogo de tantas vozes, numa caixa de ressonância que necessita do outro para poder ter sentido, mas com certeza, muito além dos cinco sentidos nasce.
Essa realidade tem em sua essencialidade a constante busca da certeza de que nossa percepção passou a ir além do que nosso pensamento e linguagem determinavam como finitude e, de que tudo isso que está aqui descrito, redigido e de certa forma dissertado e analisado possa ser chamado de arte.
Parafraseando a Profa. Lucia Santaella no livro “Corpo e Comunicação – “devemos ficar perto dos artistas e observar com olhos novos o que eles, desde sempre, não se cansam de trazer ao mundo: sensibilidade regenerada que cartografa roteiros para a nossa habitação em paisagens do mundo e do humano que despontam no horizonte.
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