domingo, 2 de março de 2014
O BBB de Marli seria um meio de verificação
do Índice de Potência de Desenvolvimento Humano
Marli tirou sua carteira de identidade em Faxinal do Soturno, município
de Caembora. Teve um filho que por lá deixou, veio para São Paulo e depois de
muitos anos, mulher feita, como ela diz, foi com o marido, com o qual se casou
em São Paulo, buscar o primogênito. A mãe não deixou levar o menino que homem
se tornara. Marli relutou, mas não conseguiu trazer o filho ficou na lembrança
como eternamente menino. Voltou para São Miguel Paulista e continuou a sua vida
com o marido e os filhos, nessa cidade, vivendo e trabalhando no Jd Lapenna e
adjacências.
Marli, há 26 anos, diariamente recolhe os resíduos sólidos com seu
carrinho. Consegue levar o material para uma central de reciclagem. Enquanto
recolhe Marli comunica às pessoas sobre a necessidade de cuidar do lugar onde
se vive.
Apesar de ser vista como alguém fora do normal, segue sua toada de
educar a todos, no sentido de garantir a vida de tudo, inclusive das “águas,
dos córegos, do rio” , dentre outras ideias e saberes tem um projeto
de galerias pluviais, sabe até calcular vazante, jusante. Ela consegue unir
mérito e cooperação sem o devido reconhecimento da maioria das pessoas.
Solidária, sábia das questões ambientais com seu espírito colaborativo lá vai
Marli todas as manhãs...
Ao encontrar, num desses dias, uma sabiá doente e com fome, atendida por
um pai e uma criança lembrei de Marli, que com seu trabalho, atitude, protege,
não só os seres humanos, mas os pássaros, as árvores, e tantas outras vidas,
até mesmo minimiza a dor de um rio tão maltratado: “meu rio, meu Tietê,
onde me levas?
Marli não tem a mesma remuneração de um especialista em educação
ambiental, seja de empresa ou do poder público. Muitas vezes manifesta sua
preocupação com o atraso de sua conta de luz. Marli merece, no mínimo, ser
ouvida nas discussões, nos debates das redes de proteção social, ambiental e de
solidariedade.
Num ímpeto para dar visibilidade às atitudes de Marli, nesses tempos que
o inefável espírito empresarial tudo impregna, pensei em instalar câmeras e um
sistema de captação de áudio no trajeto do labor cotidiano de Marli. Seria uma
espécie de reality show da exemplaridade de seu atitudinal. Mas quanto é
difícil conquistar e sensibilizar patrocinadores para essa empreitada...
Talvez as agências que cuidam da publicidade das ações de
responsabilidade social das empresas admitiriam que as atitudes de Marli fossem
dignas de serem difundidas, divulgadas, porém mostradas ao mundo, quase certo não
dariam retorno, nem de imagem, tão pouco dividendos, pela baixa audiência
provocada, portanto não merecedora do investimento para um BBB da
exemplaridade.
Também pensei que Marli pudesse ser objeto de estudo da Faculdade da
Universidade Pública de Gestão de Políticas Públicas, mas o fechamento do
campus por diagnóstico de solo contaminado, mais o pouco interesse e a
invisibilidade de Marli para o mundo acadêmico, além da avalanche de conceitos
a serem alinhados, citados e bibliografados nas teses faria com que o
conhecimento, o qual Marli é produtora, só fosse incorporado à Universidade daqui
a cem anos.
Dentre outras ideias, vivendo às margens do Tietê, na Zona Leste da
cidade de São Paulo, Marli profunda conhecedora dos caminhos das águas do
território, já sugeriu uma rede logo após a Usina Elevatória da Sabesp. Essa
rede, segundo ela, seria sempre colocada nos dias de chuva: “assim Sr. Cometa,
todas as pets parariam por lá e todos nós, catadores, poderíamos viver melhor”
“Os grandes engenheiros, diz ela, doutores, governo precisariam melhorar
as formas de reciclar, reaproveitar e reutilizar, sendo que o povão precisa colaborar,
não comprando as coisas que sujam, poluem e permanecem boiando e se arrastando
por ai, daí melhoraria bastante a vida de todos e tudo que é uma vida só”. No meu canto fico a imaginar muito mais pessoas com a consciência de
Marli.
Cabe uma reflexão: o tão proclamado capital social e o tão enaltecido
apoio ao empreendedorismo, não conseguem absorver, captar as atitudes e
sabedorias voltadas à transformação social de quem, como Marli, convive com a
escassez. Ela lamenta que mais um posto “Coletor de material para
reciclagem” foi fechado, problemas de documentação, alegam as autoridades.
Existem famílias, pessoas, grupos que se dedicam a recolher os
resíduos sólidos dessa e de tantas outras cidades. Invisíveis
colaboradores atenuam a insustentável dinâmica da cidade. Precisam, no mínimo,
serem ouvidos, precisam de apoio, aprimorarem suas capacidades, pois fazem um
trabalho de responsabilidade social de fundamental importância.
Marli tem o mérito de pensar como pensa somado ao sentimento de
cooperação, importante indicador de potência humana, que poderia ser adotado,
por exemplo, pela educação, ao que parece contraditório com o regime de poder
contemporâneo.
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