terça-feira, 15 de março de 2016

Tietê – Sentimentos de rio, cidade e gente

“Senhor doutor das águas e da energia,
eu sei que tem os córregos do Lapenna, 
do Cruzeiro e do Jacuí e um outro que todo mundo conhece, 
 o rio Tietê,  parece com o senhor pois ele nunca, nunca conversa,
mas ele é diferente, ele tem mais sentimentos que o senhor,
ele não se esconde, tem até mais respeito que o senhor,
ele é um rio e o senhor é um ser humano,
a sua vistoria precisa dos meus olhos
e dos olhos, da história do rio,
vê se o senhor percebe e respeita"
(morador da Várzea do Tietê
Decepcionado com o Poder Público)

Tietê, meu rio, segue um pedido, feito corredeira, para levar essa tristeza dos últimos dias em que as nuvens de lá e acolá trouxeram da nascente até as terras de Ururaí – São Miguel, toda essa água que se somou as águas dos nossos olhos. E assim as águas trouxeram dejetos, cacarecos, trecos, madeiras que um menino até poderia transformar num violão, quiçá para tocar um lamento, enquanto a criança fotografa com a menina dos olhos todo esse pranto – desabafo - rio, misturado com nossa incoerência.
Sim, Tietê, meu rio, dizemos que sabemos pouco sobre sua relação com a cidade, mas a verdade é que não sabemos nada. Por isso, também na insistente poética do espaço, estamos à procura dos ativos tesouros do conhecimento sobre ti e sobre todo um pensamento ecossistêmico para que essa várzea urbana tenha vida. E a  nossa lida tem inúmeros desafios quando olhamos para ti e percebemos que precisamos seguir um caminho composto de sentimentos, numa constante escuta a tatear um aprendizado com quem até de ti já se esqueceu, ou simplesmente nem quer saber de tua existência, seres tão distantes e ao mesmo tempo tão dentro de seus braços, de seus domínios, que como um rio de planície, essa gente, parece se arrastar lentamente nessa cidade tão desigual.
Sei para onde me levas, pois nasci nas tuas margens e sei do desembocar das águas do Tamanduateí em teu leito. Sei também, Tietê, que como um rio de planície segue assim até Pirapora, percorre e salta pedras de Itú até, bem mais além, alcançar Barra Bonita desaguando no Paraná, e lhe peço que com sua energia acumulada das almas dos índios, visões estupefatas de outros tempos dos povos ibéricos, com todo o suor e sofrimento de nossa África aqui pulsante, e de tantos imigrantes do velho mundo, que nos ajude a desconstruir o estigma dos que contigo coabitam o espaço onde o tempo e todas as águas nos lembram sempre que essas terras são muito mais tuas do que nossas.  
       Faz Tietê, meu rio, que algum sobrevivente dos pássaros que partiram, garças que padeceram, gaviões brancos e também outras tantas aves como cambacicas, pitiguaris, sabiás, tiês, mais os teus afluentes, fluentes córregos hoje impedidos de fluir possam simbolizar, numa geografia pública e sensível, um recado para que as nossas análises sobre as realidades ambiental e social evidenciadas em tuas margens considerem, pressupostamente, que os sintomas desse desatino é consequência da segregação dessa metrópole, das culturas de governar e legislar sedimentadas na errônea compreensão que temos sobre os significados de rios e cidade.    
     Percebi nas idas e vindas do teu trajeto que a nossa racionalidade e contendas meritocráticas, revelam no fundo, quando tiramos a máscara, que somos artistas desprovidos de arte, desgastados no teatro da vida da metrópole, inibimos nossa capacidade de representar. Mantemos sentimentos ofensivos, repressivos e autorepressivos em nome da égide da autenticidade perdida no ensimesmamento de um domínio público vazio e na confusão com o domínio íntimo. Na pretensão de mudar o mundo, vivemos sobrecarregados de tarefas que não podemos realizar e postergamos o que descobrimos como essencial fazer agora.            
Nesse momento que meus olhos acompanham, em meio ao deslocamento do trem, a primavera a acenar e, na janela, sexagenário, sinto– me um menino a tentar espantar a tristeza desses tempos e por um momento me encanto com as flores da primavera em pleno verão da quaresmeira. Daí, numa tentativa frustrada, desejo conversar com os hibiscos que margeiam a linha da vida, do trem, tudo tão próximo ao rio no qual meus antepassados viveram a ludicidade e a sobrevivência em um Bom Retiro.
Hoje me percebo como uma espécie de homem sem conteúdo, um homem que feriu seu rio, porém inserido numa narrativa citadina a considerar os hibiscos, as primaveras dessa Várzea de sonhos e desventuras como cúmplices dessa longa e breve jornada.
Por um instante sou levado a me conectar ao século XVI, ao mesmo tempo com o real e presente cenário urbano da segregação desses tempos vividos agora, a focalizar num movimento concreto dos olhos, como uma câmera, uma coisa sentimentalizada por minha tristeza, o leito de teus córregos, em que seres humanos mastigam migalhas salgadas da sobra do capital, com alimentos artificializados em embalagens produzidas pelo óleo, petróleo... Na aurora de uma cidade feia, percebo crianças a correr e subir nas árvores que ainda restam nesses redutos em que tão pouco há para ser dividido com muitos.
Tietê, meu rio, foram nossas tantas iniciativas, nesses tempos vividos para compensar o desalento que se esvaíram no leito de nossos equívocos. Tantos jovens que se dedicaram a deixar um legado nesse pedaço da polis. Mas, tanto as ideias como a concretização de atitudes que poderiam transformar tantas histórias, foram levados pela chuva de nossa desconsideração em relação à sua importância, na triste constatação que a sociedade se amplia, mas suas exemplaridades são descartadas por aqueles que a comandam.
Como suscitar crença na aparência das ações que revolucionam em um meio de estranhos? Como criar continuidade de conteúdo em relação às regras, às leis, se somos vistos, aqui nas suas margens e dentro de ti como seres sem conteúdos, inseridos numa geografia pública a reconhecer somente o que tem lastro e o que reflete moeda e mercadoria?  
Tietê, meu rio, somos cobrados para criar e aprender a ligar códigos, o que para seres vistos como “sem conteúdo” é altamente complexo, não somente por falta de conhecimento, mas pela simples razão de que a expressão social advinda da apresentação e da representação não reverbera, como esse texto, os sentimentos reais da cidade para cada um dos seus inúmeros “eus”. 
Diretamente desse assentamento humano, um verdadeiro “palco” preenchido também pela luz dos dias, sombras, seres e tuas águas, Tietê, nesse canto do mundo com  penas capitais, a platéia assiste imagens aéreas e terrestres espetaculares, a partir de sensações de estar a visualizar e absorver, semioticamente, uma ficção sem precedentes, apesar de produzidas concretamente pela inequidade, como um filme de ação, no qual um rio é um vilão junto com essa gente transformada em gente - anfíbia.
Os expectadores, longe de tuas margens, são cocriadores e co - produtores de um película a ferir nosso cristalino a provocar cataratas a cântaros em nosso olhos, nossos corpos também demonstram a culpa pela tua enfermidade e pela doença civilizatória dessa e de outras cidades.
Tietê, como diria o poeta “que contradizes o curso das águas e te adentras na terra dos homens” leva essa tristeza para longe, nós, aqui na tua várzea, precisamos aprender a aprender o que a vida está a nos mostrar: a ter antes de tudo um sentimento de cidade para fazer a cidade saber de ti e dessa gente a viver à margem nas suas margens.

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