segunda-feira, 25 de abril de 2011



O que é estar dentro e o que é estar fora?
Na conversa desse moço que vive nas ruas
da cidade, a questão.

Liturgia de um morador de rua

Raimundo Santos Filho
Personagem real

Moro na rua. Mas sou inteligente. Sei o que é um asfalto de qualidade. Ele é mais claro, não é escuro. Quando a luz de “mocuro” bate, reflete assim a clareza, clareia os pensamentos de quem, como eu, dorme aqui mesmo, perto desse arcanjo. O senhor sabe que o São Miguel mora ai dentro. É dentro da Capela. A noite ele sai para conversar com a gente que dorme aqui fora.


Mas o senhor sabe aqui fora é dentro, é dentro da cidade. Engraçado, não? Aqui fora é dentro e o santo, quando está lá dentro, está fora do céu. Ah, o que o senhor não sabe, é que eu já estive no céu. Uma vez, uma perua dessas de acolher da Prefeitura passou por aqui e levou a gente para visitar o céu.


O que o senhor não vai acreditar, é que quando nós chegamos lá, estavam todos os santos que nos conhecem aqui das ruas. O São Vicente estava lá. O Santo Antonio sabe, aquele dos casamentos? Inclusive eu estava com a com a minha namorada, ela também dorme na rua, é linda, mas às vezes voa, some...


Mas estava também lá no céu, o Jesus Mestre, dessa igreja daí do Lapenna, só não estava o São Miguel. E olha: eu tinha falado para o técnico da Prefeitura, que o São Miguel não estaria lá, pois ele está fora do céu. Ele está na Capela e, de noite, vem conversar com a gente. Ele é uma espécie de assistente social. O Natanael diz que ele é um arcanjo, não é não. Para mim ele é um santo que trabalha na Prefeitura.


Claro, o chefe dele é o Padre, se bem, que o Barba disse, que Santo assistente social não tem chefe. Mas ele pede para o Padre abrir a porta da Capela, para poder dar uma olhada na gente.


A gente procura deixar a Praça sempre limpa. Só que às vezes a gente exagera. A gente fez uma festa da Virada. O senhor quer um gole? Quer não? Então, depois que o São Miguel conversa com a gente, todo dia é assim, a gente dorme.


O Barba diz que o São Miguel fica olhando e protegendo, para que nenhum desses loucos que agride morador de rua apareça. A gente dorme em paz. Mas agora a gente vai catar papelão. Ah, o senhor tem uns trocados? Não tem? Não faz mal. Vejo sempre o senhor por aqui. Acho que vi o senhor umas duas vezes, uma foi no dia que a noite a gente foi para o céu.


O senhor não sabe. Outro dia a Praça do Forró se transformou num rio. Ué, eu pensei, os índios estão aqui. Senhor eu sei ler. Quer ver o que está escrito ali: Ururaí. Viu?


Tá vendo ali, lá no fundo, aquela montanha verde? Ali é a serra da Cantareira, já tive lá. Dá para ver o lado de fora da cidade, ou seria o lado de dentro? Ah, onde eu nasci tinha um riacho... Lá onde nasci é longe, para lá de Aracaré, bem para dentro, fora da área da praça e da estação.


Bem, tenho que caminhar. Fazer exercício. São Miguel disse que preciso fazer atividade para o corpo, assim, fico descalço, sinto a terra, eu sei, é porque a terra não é o céu. Até logo, doutor, já vou indo, gostei do senhor. O senhor me dá o seu chapéu? Já que o senhor prestou atenção, o senhor estava fora da história, e dentro de Praça...

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