quarta-feira, 13 de março de 2013


Tietê é testemunha

Salesópolis, Mogi, Itaqua, Poá, Aracaré.
Mara Helena no Jardim já quer casar no  Itaim
com Manoel Feio, na Igreja de João Batista
ou na Capela de um Arcanjo Miguel.
Tie, Tie, Tietê, São Paulo – Barra Bonita...

Ao inundar a rua, via, viela, asfalto e terra, durante o temporal de mais um verão, vivo por alguns instantes essa relação cronotopica – emocional intensa com a cidade. Toco com meus braços e minhas mãos o solo urbano. Este é um emaranhado de arranjos e desarranjos de um tecido com tramas complexas a gentrificar com pontos, nós e laçadas a re - capitalização imobiliária, revelando a cada sensação sócio - espacial, evidências de um conluio de forças intensas a criminalizar a pobreza, salvaguardando uma lógica urbana e uma consequente ausência de política urbana associada a estratagemas de padrões de modernização atrelados a um “fingir não ver” os descalabros de uma das duas da mesma cidade: a do mercado elitista, restrito e especulativo e a outra, ah sim, a outra construída pelos pobres.
Para qualquer ensejo, programa, política ou até mesmo ensaio de estratégia para o “habitar”, pensada pelos humanos que se estabelecem no poder dessa cidade, vem um impacto desconcertante no valor da terra urbana e, por aqui, numa dessas tantas várzeas que banho, na Zona Leste de São Paulo, meu companheiro rio Itaquera que dá nome a uma bacia do rio Verde ao Jacu, assiste a um êxodo de pássaros, gentes, árvores... provocado também por uma obra do tamanho ora de um mundo, ora de uma bola. Quiçá haverá compensação ao habitar? Bem, tudo se configura como uma dentre tantas desigualdades, e para mim com sentimentos e sentidos de rio fica difícil não chorar, avançar, invadir...
Em meio a mais um transbordar, contrariado, percebo a presença da necessidade de mesmo sendo um rio, entender a importância de pensar a cidade, ser a cidade e interromper um processo secular da aplicação da lei para manutenção do poder concentrado e privilégios que promoveram a desigualdade social no território da urbe que o poeta declamou e que me prestou até homenagem.
Mas pensar e ser a cidade se configura como nada fácil, pois é necessário vontade humana e, principalmente, uma educação que contemple desde o princípio estudar a cidade, estudar também seus rios... Ouvi isso ao me aproximar de uma universidade, necessidade de uma educação que pense, estude e perceba a cidade como forma sensível de civilização, desde criança, e, por favor, humanos, ai vai o meu recado - rio: passou da hora de deixar de ser antropocêntrico.
Sou rio, sou testemunha. Tiê, Tiê, Anhembi, Anhembi, peço água. Minhas margens rejeitadas pelo mercado imobiliário abrigam os que lá passam e passaram a viver, muitos por conta do abrir caminho quando nos tempos da industrialização da cidade, e quem mais chegar, chegou, chegança... E chegam diariamente “retirantes retirados”, alguns até alimentam ações para conquistar moradias questionáveis, outros em nome da justiça cristã pelo espaço urbano, engajam-se em movimentos, mutirões, para sair da vala comum de quem sabe um dia deixar de habitar as beiras dos córregos, as encostas, terrenos sujeitos a enchentes...
Ah, sou Tietê, uma das testemunhas não - humanas de tudo que aqui se manifesta feito lítero – rio nessa poética urbana, literatura aqui pulsante de um coração - rio machucado por todo esse cenário aqui um pouco descrito e contextualizado. Venho de Salesópolis, adentro Aracaré, passo por São Miguel, perco minha sinuosidade. Minha voz por vezes lúgubre, assim se fez estética, timbre de um rio, pelo descaso e não percepção de minha existência. No mínimo existo em minha inexistência, insisto em perguntar aos seres, sejam humanos ou não – humanos, sobretudo aos humanos: o que é sustentabilidade? O que é uma cidade? Ou seriam duas cidades? E, com minha percepção entendo que a tolerância com a ocupação irregular das terras urbanas foi por conta de que essa gente não teve acesso ao mercado imobiliário e nem foi atendida pelas políticas públicas.  
Como rio que sou de tantas cidades e, por São Paulo, tenho apreço, constato e percebo a invisibilidade visível de tantos outros seres, até mesmo admito o direito à ocupação de minhas margens, por aqueles que nem tiveram direito à cidade. Sou Tietê e levo a pena desse que escreve. Aliás, diria o poeta Tietê, onde me levas? Sarcástico rio que contradizes o curso das águas E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens... Adentro a terra dos homens, pois ela é também minha terra. Sou um rio que a cada chuva sai em busca de meus caminhos, lagoas...
E, com minhas e tantas águas do céu, da terra e dos meus olhos d’água, levo e depois devolvo narrativas de vida, pertences de tantos sem vida digna, assim como eu, a viver com essa gente anfíbia um processo de transmutação em dejetos, objetos, resíduos, sobras da cidade, a viver nas bordas, nas margens de mim mesmo...
Percebi o olhar desse que escreve quando soprei meus sentimentos de rio aos seus sentidos. Ele olhava para mim do vagão do trem e, mais tarde, ele avistou o Verde, o Jacu, o Itaquera. Foi então numa espécie de psicografia fluvial simbolicamente se estabeleceu uma parceria com esse rio que vos fala por meio dessa manifestação literária, que apesar de mostrar o desencantamento de um rio, quer chamar atenção para a  necessidade de repensar essa cidade.
Ai Tamanduateí, acolha meu companheiro quando esse chegar em casa, sopre aos ouvidos dele seu desembocar afetivo em minhas águas, quiçá não nasça outra narrativa – rio?

                                    Sentidos e Sentimentos soprados pelo Rio Tietê 

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