terça-feira, 15 de abril de 2014


Uma moeda nas mãos de um morador de rua

Havia uma moeda entre os dedos do morador de rua. Uma moeda prateada. Centavos de real que brilhavam com a luz do sol a iluminar a estação de trem do bairro da Luz. Os olhos do sol, naquela manhã, olhavam atônitos para o movimento humano e para conjugação eu não confio, ele não confia, estar desconfiado, faltar confiança, motivar desconfiança, ainda mais quando alguém lhe pede uma moeda, na urbe, onde pouco importa nossa disposição anímica, temos de ganhar a vida, mesmo perdendo-a.  
Num ritmo descompassado, pela vertigem labiríntica do corpo a adentrar o saguão da estação, rejeitei o pedido do homem sentado no chão com a moeda prateada a produzir um incomodo – reflexo nos meus olhos. Ora os meus olhos, sempre estão a procurar novos horizontes de vida, a viver sempre o enredo dessa vida de viver para que a vida dos outros possa ser melhor vivida.
Comerciários subiam as escadas apressados. Patrões sul - coreanos não gostam de atrasos. Enquanto isso no Brás um contingente de costureiros latino - americanos iniciava sua jornada inumana de trabalho.
No celular um usuário do trem da empresa ferroviária fora dos trilhos da ética, assiste na TV um comercial sobre produtos de beleza, maquiagem, em meio às notícias extras de gente a queimar o que é inflamável no meio de outros trilhos e vias. Calor!!! Outono abafado.
Pela janela do vagão meus olhos agora navegam. O reflexo do trilho remete-me ao brilho da moeda nos dedos do homem no saguão da estação. Milhões de moedas, toneladas de ferro, cal e cimento com custos majorados pelos consórcios vitoriosos das licitações de obras públicas sem publicar a realidade, ou melhor, a irrealidade de suas contas.
Talvez o conteúdo do parágrafo anterior não seja tão interessante, ou melhor, como diz o dito popular reedito o conformismo e a apatia da maioria dos citadinos: sempre foi assim. E todo o nosso ideal identificado com aqueles que nos vendem o combate a corrupção, quiçá erradica-la? Talvez  tudo isso é uma soma de produções fantasmáticas, mediações e estratégias de marketing político que nos fizeram acreditar na mudança, mas a realidade: credo em cruz. Porém, será que realmente queremos a mudança? Pois é preciso ceder, conceder...
No nordeste a improbidade atracada no porto, no sudeste os trens a descarrilar milhões, e o refino da corrupção em plataformas de uma combustão alimentada por relações perigosas. Há mais cenas a partir do reflexo da moeda do que a nossa vã filosofia e transparência conseguem dar conta.
“Credo em cruz”. Ouço agora a caminho de São Miguel Paulista. Trata-se do espanto de quem passou a ser inadimplente. Ocupações se multiplicam debaixo dos viadutos, margeando os rios, os trilhos. Nossa !!! Uma imagem sustentável: num dos vãos uma plantação, uma horta comunitária, uma esperança.
São tantas moedas, milhões que se esvaem em despesas aventadas com a justificativa de um pretenso desenvolvimento. Dinâmica viciada por uma cultura de governar com “ajeitamento nos cargos”. Lácteas absorvências do erário público por famintos que se revezam no poder, a utilizar as mesmas estratégias para dar conta dos contatos imediatos e perigosos das contribuições, doações, investimentos nesse ou naquele grupo.
O trem da vida da cidade avança. Os trilhos da Zona Leste margeiam a Rodovia dos Trabalhadores. Agora os centros de treinamentos. Os jovens peneirados. Também paralelamente avançam as grandes obras de valor, elas não contem o inventário de nossos sentimentos, são do interesse de quem detém o controle da dinâmica eventual e comprometida dos investimentos que se deslocam pelo mundo, desse mundo louco alimentado por atitudes e dinâmica comportamentais questionáveis e retro - alimentadoras das erosões, sem princípios de coletividade e nem de solidariedade ecológica.
Diante do brilho da moeda nos dedos do morador de rua, na porta da estação, mais os reflexos dos trilhos, e das trilhas entre córregos, barracos, trecos, cacarecos, dejetos, “percebo que nossa sensibilidade, os nossos sentimentos já não nos prometem nada: sobrevivem ao nosso lado, faustosos e inúteis como animais domésticos de apartamento e a coragem para mudar não cessa em bater em retirada”.
Desembarco em São Miguel. Percebo que estamos sem vocação para mudar tudo isso. De certa forma, tudo isso apontado nessa pretensa crônica – trem e, ao mesmo tempo, uma espécie de ventre obscurecido pelo chumbo de nossa apatia. Mas não seria essa cultura crítica apontada nesse texto que nos move aos destinos, e disfarçamos, fingimos contestar e não reconhecer que vivemos numa condição triste.
Ah, triste condição, ao constatar que o equilíbrio e o que se proclama como sustentável, para ser alcançado, necessita do aporte e disposição de quem até agora alimenta o insustentável.
Lamentamos pelas moedas lançadas no mar de lama, pelos ossos e muambas enterradas debaixo do barro do chão. Oremos pelas crianças em meio a tudo isso. Oremos por tudo aquilo que ainda pode vir a ser um alimento para a percepção de que precisamos mudar, no mínimo melhorar nossa disposição, nessa sociedade, na qual se instalou um clima de desconfiança, até certo ponto justificável, do primeiro para o segundo setor, do segundo para o terceiro, mais a contaminação da exploração, nos bolsões da pobreza, pelo modus operandi  secular advindo das culturas de governar e legislar que precisam ser revistas e mudadas.
Uma moeda nas mãos de um morador de rua.

Tantas moedas que se esvaem nessa terra brasilis. 

Seja o primeiro a comentar

Postar um comentário

NCC São Miguel no Ar

Galpão de Cultura e Cidadania
Rua Serra da Juruoca, nº112
Jardim Lapenna - São Miguel Paulista
São Paulo - SP
Telefone: (11) 2956 0091
E-mail NCC: projetosmnoar@gmail.com

Fundação Tide Setubal

Rua Jerônimo da Veiga, 164 - 13° andar CEP 04536-000 Itaim Bibi - São Paulo - SP Telefax: (11) 3168 3655
E-mail: fundacao@ftas.org.br

CDC Tide Setubal

Rua Mário Dallari, 170
Jd. São Vicente - São Miguel Paulista
São Paulo - SP
CEP 08021-580 Telefone: (11) 2297 5969

  ©Template Blogger Green by Dicas Blogger.

TOPO